sexta-feira, 3 de maio de 2024

Ruanda, 30 anos:

 

Ruanda, 30 anos: As digitais colonialistas no genocídio

Em 1994, 800 mil foram assassinados, em apenas cem dias, por extremistas étnicos hutus. O Ocidente foi negligente – e a França apoiou, inclusive militarmente. País recuperou a paz e desenvolvimento econômico, mas as feridas continuam abertas…

Foto: Ventures Africa
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Por João Henrique Pio EliasLuccas GissoniAmanda Cristina da SilvaIsabella Werneck Zanon Paulo Vitor Nascimento dos Santos, no Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB)

Ruanda está na região oriental da África, a última do continente a se integrar à economia do mundo capitalista, onde antes dessa integração existia um sistema de castas que dividia a população em tutsis, formada pelos grandes criadores de gado, e hutus, formada pelos pequenos agricultores. O sistema político era fundamentado em um clientelismo patronal, com o poder exercido pelos tutsis na forma de uma aristocracia e de um rei denominado Miawmi, porém havia uma certa flexibilidade que possibilitava que os Hutus exercessem cargos administrativos. A partir da colonização belga, há uma intensificação da polarização desses grupos devido ao processo de cristalização das identidades étnicas e da relação de poder, baseada na suposta superioridade natural do grupo tutsi originada pelo mito Hamítico. Este fora introduzido pela visão cristã e pelo cientificismo, introduzido pelos eugenistas, baseado no fato de que alguns marcadores físicos dos Tutsis serem mais próximos das características europeias. 

Essa ideia servirá para legitimar a relação de dominação exercida pelo colonizador branco e pela aristocracia tutsi, bem como da exploração do trabalho, exercida na forma do uso do trabalho forçado dos Hutus e do avanço das terras da aristocracia sobre as terras de uso comuns, com o objetivo de expandir a agricultura voltada para a exportação. Esse processo cristaliza a propriedade da terra na forma da propriedade privada que rompe a antiga relação de equilíbrio. Nesse período a configuração dos grupos em duas etnias se estabelece oficialmente, com o Miawmi criando as carteiras de identidade étnica, que determinavam a inserção social de cada indivíduo. Dessa forma, as populações das aldeias se tornaram força de trabalho e os tutsis se consolidaram como uma aristocracia agrária, proprietária de grandes extensões de terra. 

A partir de 1950 há um processo de abertura política que acirram as tensões, e que tem como desdobramento a Revolução de 1959, quando ocorre a revolta dos hutus contra o modelo aristocrático, que resulta na abolição da monarquia, sendo de grande importância a mídia alternativa formada por imigrantes hutus que voltaram em melhores condições de países vizinhos e que ingressaram nas escolas frequentadas pelas classes dominantes, tornando-os lideranças intelectuais responsáveis por articular a classe trabalhadora no processo de questionamento e luta contra o monopólio tutsi. 

A Primeira República, governada por Kayibanda, manteve as fronteiras étnicas, porém estabeleceu um sistema de cota para cada etnia na esfera social pela lógica de proporção demográfica na população total do país, também servindo para determinar a distribuição de terras. A economia volta ao modelo de pequenas propriedades voltada à subsistência. Porém a dificuldade de implementar o modelo de cota e a baixa produtividade agrícola, frutos dos baixos investimentos do governo, que dificulta geração de excedentes para possibilitar a importação de bens demandados pela população, levam a revolta da população contra as classes mais elevadas, onde a instabilidade gerada e a inação do governo, favoreceu o apoio ao golpe de Habyariama e o início da Segunda República.

O governo Habyariama orienta a economia para a produção agrícola em pequenas propriedades, mas dedicada à exportação para possibilitar o retorno das importações. O governo, além de fornecer subsídios, também adota políticas que restringem a liberdade dos proprietários como a proibição de cortar pés de café, de circular internamente e a obrigação de vender o café a preço fixo para companhias monopolizadoras de exportação, beneficiando a burguesia comercial apoiadora do seu governo. Desse modo, os ganhos ocorridos durante a expansão da economia se concentram nesse grupo, de modo que os grandes gastos do governo nesse setor da economia durante o período de baixa do preço do café, levam ao seu enfraquecimento e ao surgimento de grupos que visam sua substituição sendo o mais proeminente a Frente Patriótica de Ruanda (FPR).

A FPR, à semelhança de Habyariama, possui um modelo autoritário e violento de atuação, porém estava ligada principalmente aos interesses de uma incipiente burguesia industrial, bem como possuía uma visão negativa do campesinato, onde o objetivo era reorientar a economia para um modelo industrial, por meio de um êxodo rural. Estabelece-se um medo no campesinato relacionado ao risco de perder a propriedade das terras, conquistadas durante a revolução de 1959, onde se faz uma correlação entre essa vertente política e a antiga aristocracia agrária do período monárquico. À medida em que as forças do governo iam perdendo terreno para a FPR, os meios de comunicação reforçavam essa correlação e criavam outra estabelecendo uma estreita ligação entre a RPF e os tutsis e destes com a riqueza, sendo culpados pela situação socioeconômica, de modo que os tutsis seriam traidores a serviço da RPF. 

O genocídio se torna uma espécie de resistência a um novo modelo social tido como restaurador das antigas relações, onde as autoridades e os habitantes da cidade se articulam para encontrar e executar as vítimas [1]. Porém, aliado a isso há a adesão dos camponeses, atraídos pela suspeita da perda da terra e também os benefícios oriundos da pilhagem da propriedade das vítimas, onde ocorre um processo de alienação que transforma as perseguições em uma atividade econômica. A antiga relação pré-colonial que estabelecia uma relação de solidariedade entre esses grupos foi dissolvida a tal ponto que ocorre a desumanização do outro, visto apenas como uma ferramenta utilizada para a obtenção de ganho, algo que foi sendo desenvolvido ao longo dos processos de sociometabolismo durante e pós-colonização. 

A descolonização do continente africano seguiu, em muitos casos, uma transição neocolonial pela qual as potências coloniais, mesmo recuando da dominação política direta, mantiveram o controle econômico e político de suas ex-colônias. Essa trajetória significou a derrota de projetos pan-africanistas mais radicais e envolveu a balcanização das nações africanas, bem como a aliança de algumas elites locais com o imperialismo. Dessa forma, as potências conseguiram garantir seus interesses no continente promovendo disputas locais que algumas vezes assumiram contornos étnicos. A transição neocolonial produziu, portanto, a fratura de Estados e, em casos extremos como o de Ruanda, o genocídio.

O papel da França

Assim, o papel da França no genocídio em Ruanda foi multifacetado e controverso, tendo implicações significativas para os direitos humanos. Antes do início do genocídio, a França mantinha laços estreitos com o governo ruandês da época, liderado pela etnia hutu. Esses laços incluíam fornecimento de apoio militar, treinamento e assistência política ao governo hutu.

Durante anos, a França foi vista como um aliado próximo do governo hutu, apoiando sua política e contribuindo para a tensão étnica e política no país. Esse apoio pode ter dado ao regime hutu uma sensação de impunidade e segurança para avançar em seus planos genocidas. De acordo com a BBC, “A França estava ciente das preparações para o genocídio e apoiou o regime hutu, tanto militar quanto logisticamente”. Ressaltando as acusações graves de que a França não apenas estava ciente do que estava por vir, mas também desempenhou um papel ativo em sustentar o regime.

Além disso, há acusações de que a França ignorou ou minimizou os sinais de preparação para o genocídio, tanto dentro de Ruanda quanto em relatórios de organizações internacionais. Algumas fontes também alegam que a França forneceu apoio direto a líderes hutus envolvidos nos massacres.

A atuação da França durante o genocídio em Ruanda levanta questões importantes sobre sua responsabilidade no cumprimento dos direitos humanos. Ao apoiar um governo envolvido em crimes contra a humanidade, a França demonstra que sua atuação no continente africano é neocolonial e corresponsável pela produção do genocídio, e não comprometida com a proteção dos direitos fundamentais dos povos africanos.

Portanto, o papel da França no genocídio em Ruanda é uma questão complexa que requer uma análise cuidadosa das políticas e ações do governo francês nos estágios colonial e neocolonial. Esta questão tem implicações profundas para os direitos humanos e para a maneira como os países devem agir em resposta a violações graves desses direitos em outras partes do mundo. A implicação direta de um país como a França em tais eventos também abre um precedente alarmante sobre a ética na política externa e a importância do cumprimento rigoroso dos princípios de direitos humanos internacionais.

Sobreviventes

Ruanda fez progressos econômicos impressionantes nas últimas três décadas, transformando-se em um exemplo de crescimento e desenvolvimento na África Subsaariana. Entretanto, como reportado pela Folha de São Paulo, esse crescimento não apagou as cicatrizes deixadas pelo genocídio. Muitos dos sobreviventes ainda lidam com traumas psicológicos profundos, refletidos em toda a sociedade. Este cenário evidencia uma complexa interação entre desenvolvimento econômico e saúde mental coletiva, mostrando que os avanços materiais não são suficientes para superar as feridas do passado.

A busca pela justiça foi uma prioridade no pós-genocídio, com a criação do Tribunal Penal Internacional para Ruanda e os tribunais Gacaca. Segundo a BBC, embora muitos líderes e perpetradores tenham sido julgados, persistem críticas quanto à abrangência e ao impacto dessas ações judiciais. Questões sobre a eficácia dos tribunais Gacaca, em particular, refletem as dificuldades em alcançar uma reconciliação plena, levantando debates sobre a melhor forma de lidar com a memória coletiva e a responsabilização pelos crimes.

A maneira como Ruanda tem administrado as consequências do genocídio ilustra a complexidade dos direitos humanos em contextos de pós-conflito. A necessidade de tratar os traumas, garantir justiça e promover uma verdadeira reconciliação são essenciais para a saúde a longo prazo da nação. Enquanto Ruanda continua a evoluir economicamente, a atenção aos direitos humanos e ao bem-estar psicológico de sua população será crucial para garantir que o país não apenas sobreviva, mas também prospere de maneira sustentável e inclusiva.

Trinta anos após o genocídio, Ruanda ainda está no processo de cura. A resiliência dos sobreviventes e o crescimento econômico são testemunhos da força do espírito humano e da capacidade de recuperação. No entanto, as persistências de traumas e a luta contínua por justiça e reconciliação lembram ao mundo que os impactos de tais tragédias ultrapassam gerações. Assim, a memória dos eventos e das vítimas deve continuar sendo uma peça central na narrativa nacional e um pilar para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Comentários de Paul Kagame (atual chefe de Estado)

Paul Kagame, atual presidente do país, teceu críticas aos países do ocidente que não agiram para evitar o massacre e considerou falha a tentativa dos Estados Unidos em expressar solidariedade por meio do seu secretário de Estado – Anthony Blinken – nas redes sociais, sem reconhecer as verdadeiras vítimas que são o povo tutsi. Outras autoridades corroboram o posicionamento do presidente pois consideram que a ambiguidade estadunidense em não reconhecer as vítimas e, principalmente, os algozes é uma deturpação da História. 

Intrinsecamente ligado a história do genocídio por ser o líder dos opositores ao governo de Habyarimana, o presidente pede que o dia 7 de Abril seja um dia de comemorações sem críticas ao povo ruandês. Por ser tutsi e um dos fundadores do FPR, compor o governo pós-genocídio possui mais que legitimidade para representar Ruanda. Kagame no 30º ano após o genocídio em discurso agradece aos países vizinhos que na época os acolheu e não faz critica aos soldados que estavam ali em missão de Paz, mas culpabiliza toda a comunidade internacional pela negligência a Ruanda durante os 100 dias de massacre ao povo tutsi, principalmente a França que fechou os olhos para a barbárie como foi revelado em relatórios franceses.

Contudo, Kagame gera polêmica, pois é um personagem controverso, famoso por ser inflexível e não aceitar discordâncias, acusado de perseguição política e até mesmo assassinatos por vingança ao massacre de 1994. Especialistas das nações unidas possuem evidências de que ele está apoiando uma operação militar na República Democrática do Congo em apoio a um grupo de rebeldes do M23, que é justificado pelo suporte aos tutsis congoleses, ação esta que está levando milhares de pessoas a pedir refúgio em Ruanda.  Em paralelo é elogiado por elevar o país subsaariano por meio de políticas que afetaram diretamente no seu crescimento econômico, comprovando sua política controversa.


Nota:

[1] É interessante notar que havia uma certa dubiedade no termo tutsi de modo que a mídia alertará sobre o risco de confusão ao usar a aparência como marcador, de modo que recomendava que em caso de dúvida fossem vistos os passaportes e consultadas as autoridades. No caso dos camponeses o foco eram grupos com mais propriedades, onde essa lógica de disputa por propriedades e terras chega ao ápice de haver falsas acusações entre os caçadores para assim expandir suas posses. 


Referências:

BBC. France was ‘blind’ to Rwanda genocide, French report says. 26 de março de 2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/news/world-europe-56536659>. Acesso em 11 abr. 2024.

CABRAL, Amílcar. A arma da teoria. In: A arma da teoria. Rio de Janeiro: Codecri, 1980. Cap. IV. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/tematica/1980/arma/04.htm>. Acesso em 11.abr.2024.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FONSECA, Danilo Ferreira da. Ruanda: A produção de um genocídio. Dissertação (mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica. São Paulo. 2010. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/12637/1/Danilo%20Ferreira%20da%20Fonseca.pdf. Acesso em: 10 Abri. 2024.

N’KRUMAH, Kwame. Neocolonialismo: último estágio do imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

WALLERSTEIN, Immanuel. A África e a economia mundo. In: ADE AJAYI, J. F. (ed.). História Geral da África VI: África do século XIX à década de 1880. Brasília: Unesco, 2010. cap. A África e a economia-mundo, p. 27-47. ISBN 978-85-7652-128-80. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190254.  Acesso em: 9 abr. 2024.

A possível Primavera contra a barbárie.

 

A possível Primavera conta a Barbárie

Lutas pela Palestina alastram-se nos EUA e no mundo. Querem interromper o genocídio em Gaza, mas vão além. Repudiam um sistema que naturaliza a força bruta e a guerra de todos contra todos – para bloquear as próprias chances de haver humanidade

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Por Sarah Babiker, no El Salto | Tradução: Antonio Martins | Imagem: Nina Berman

Angela Davis fala para a câmera e sorri: “Acredito que os estudantes sempre abriram o caminho”, comenta sobre os acampamentos em solidariedade a Gaza que surgiram na Universidade de Columbia e em muitos outros campi nos Estados Unidos. A histórica ativista celebra o uso do conhecimento adquirido em todas essas universidades de elite para ajudar a construir um mundo melhor, e diz que “finalmente a luta pela liberdade do povo palestino está sendo abraçada em todo o mundo”. Ela deixa outra mensagem: o que acontecer agora na Palestina determinará o futuro de todos.

As redes sociais fervilham há duas semanas com imagens de manifestações, acampamentos, gente em assembleia debatendo, ouvindo discursos, dançando dakbe [dança tradicional palestina]. Ao mesmo tempo, policiais reprimindo brutalmente estudantes e professores, ou sionistas tentando demonstrar que não se sentem seguros nas manifestações em favor da Palestina. Tudo isso acontece nos gramados de várias universidades norte-americanas, sendo Columbia onde tudo começou. Muitas dessas cenas lembram outras vividas há mais de uma década, no Occupy Wall Street, na Primavera Árabe ou no 15M. Mas o objetivo deste ciclo de mobilizações entre barracas e faixas é bem concreto: a solidariedade com o povo palestino e a luta contra o genocídio.

Enquanto isso, em Berlim, um acampamento resistiu por duas semanas em frente ao Reichstag [Parlamento], até ser desocupado na última sexta-feira. Tudo isso ocorre num contexto em que se proíbe um congresso sobre a Palestina, impede-se que líderes europeus como o ex-ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, entrem no país e até mesmo se comuniquem por videoconferência com pessoas dentro do território alemão, ou se proíbe o uso de línguas que não sejam o alemão ou o inglês nas mobilizações.

Nos Estados Unidos na Alemanha, no Reino Unido — onde as manifestações são massivas – e na França (onde estudantes da SciencePo de Paris organizavam um acampamento na última quarta-feira rapidamente desocupado pela polícia), os protestos crescem em um clima hostil para a crítica ao colonialismo israelense. Nas universidades da elite americana, kufiyas e bandeiras palestinas tomam a paisagem enquanto pessoas de todas as origens conversam, participam de eventos e discussões, fazem cursos de árabe, aprendem a dançar dakbe e, sobretudo, denunciam o genocídio. Ilustres judeus antissionistas como Miko Peled, o candidato à presidência dos EUA Cornel West, ou políticos democratas como Ilhan Omar ou a atriz e ativista Susan Sarandon, visitam os acampamentos e se juntam às manifestações. Sobreviventes do holocausto testemunham o que aconteceu e se recusam a permitir que essa memória seja usada para justificar outro genocídio.

O despejo brutal do primeiro acampamento que começou em 16 de abril, na Universidade de Columbia, só fez com que as ações se espalhassem, até se tornarem dezenas e chegarem a universidades no Canadá, no México, na França, na Alemanha e na Austrália. Às imagens das prisões em massa daquele dia seguiram-se outras que mostram a repressão contra estudantes e professores. Na sexta-feira, dia 26, ao desmantelar o acampamento em frente ao Reichstag, a polícia produziu outra série de imagens que alimentam a indignação diante da violência imposta aos cidadãos nacionais, para defender os interesses de Israel.

Circulam as exposições didáticas de como os veículos comerciais oferecem uma narrativa distorcida do que ocorre nas manifestações, como o artigo do New York Post em que se fala de “uma estudante judia esfaqueada no olho com uma bandeira palestina”, mas se mostra um vídeo em que nada parecido acontecie. As contínuas acusações de antissemitismo, ou de defender o Hamas, não estão impedindo a expansão dos acampamentos. As universidades de elite associadas à Ivy League como a própria Columbia, Yale ou Harvard, estão povoadas por uma nova geração de estudantes não disposta a perpetuar a cumplicidade dos EUA com Israel. Na sexta-feira, um vídeo mostrava estudantes tomando o prestigioso Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Quem compartilhou o post se perguntava: “Estamos diante de uma primavera antissionista?”.

Desinvestimento, boicote acadêmico, fim da repressão e anistia para as pessoas detidas — essas são as principais demandas dos acampamentos desde que começaram em Columbia. As ações policiais também não estão conseguindo dissuadir os manifestantes. Ao contrário, reforçam as mobilizações: “Parece que a repressão está recrudescendo cada vez mais. Mas quanto mais nos reprimem, mais nos rebelaremos”, disse um membro do Students for Justice in Palestine à TV alternativa norte-americana Democracy Now.

A Universidade mostrou estar tão dividida quanto a sociedade. Enquanto a maioria do corpo docente apoia os protestos, suas elites pedem repressão, expulsam em massa estudantes e suspendem as aulas. Ao fazê-lo, recebem as mesmas acusações que os partidos: curvarem-se à narrativa sionista, por dependerem do financiamento de seus lobbies, uma submissão que poderia reinstalar o macartismo nas universidades. O próprio primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, pronunciou-se há alguns dias sobre os acampamentos nas universidades, reproduzindo o discurso de que são espaços antissemitas onde os judeus correm risco de vida e comparando os campi com os da Alemanha dos anos 30. A intervenção do mandatário israelense alimentou a percepção de que Israel está interferindo na política notr-americana, crítica condensada no irônico termo, “Estados Unidos de Israel”. A interferência sionista para que os Estados Unidos reprimam seus estudantes estaria ameaçando algo que os americanos consideram definidor de sua identidade nacional, a primeira emenda à Constituição, que garante o direito à livre expressão, à liberdade de imprensa e de manifestação.

O movimento nas universidades evidencia uma ruptura geracional nos Estados Unidos. Os mais jovens se mostram mais próximos da luta do povo palestino. Por outro lado, os movimentos interseccionais recuperaram uma tradição anticolonialista a partir da qual desconstroem as narrativas israelenses, unindo coletivos racializados que enfrentem o colonialismo racista e a supremacia. São movimentos e narrativas que preocupam fortemente os think tanks sionistas, como mostrava o relatório Navegando em Paisagens Interseccionais, publicado pelo Instituto Reut israelense e o Conselho Judaico para Assuntos Públicos há alguns anos. O mesmo texto dedica va atenção especial aos movimentos de judeus antissionistas e suas alianças com outros coletivos.

Por outro lado, as protestos também interpelam a identidade norte-americana, conectando os protestos com o movimento estudantil em 1968 contra a guerra do Vietnã, desmontando o relato que os enquadra como algo estrangeiro.

Muito drama

No momento em que o número de pessoas assassinadas por Israel desde 7 de outubro em Gaza supera 34.000, o mundo observa como centenas de corpos de crianças, mulheres e homens palestinos, alguns amarrados, outros enterrados vivos, são recuperados em valas comuns perto dos hospitais de Al Nasser ou Al Shifa, ou o exército sionista assassina símbolos como Shaima Refaat Alareer, a filha do poeta lastimado, e seu bebê. Mas são múltiplos os sionistas que insistem nas redes em sua condição de vítimas de um sentimento antijudaico nos campi. A multiplicação de vídeos mostrando o suposto antissemitismo nas mobilizações chega ao paroxismo. Tornaram-se virais um vídeo de uma mulher judia “arriscando” a se expor diante do acampamento e interpelando as pessoas presentes aos gritos:”sou judia, olhem para mim”, sem que ninguém lhe dê a mínima atenção. Ou o vídeo de outra mulher com seu cachorro, relatando que está cercada por manifestantes e não se sente segura como mulher judia, enquanto os ativistas insistem que ela pode ir onde quiser. Ou o professor de Columbia Shai Davidai, um conhecido sionista e provocador – alguns meios relacionam sua família com a fabricação de armas – denunciando o antissemitismo e comparando a universidade atual com a Alemanha nazista quando lhe negam a entrada no campus temendo confrontos.

Davidai chamaria os manifestantes judeus solidários com Gaza de Kapos, em referência aos judeus que colaboraram com os nazistas, fatos pelos quais foi denunciado. E por mais que movimentos como Jewish Voice for Peace ou Jews for Ceasefire estejam entre os organizadores dos acampamentos, e estes contem com a presença contínua de pessoas judias, isso não parece ser suficiente para desmontar a narrativa que confunde antissionismo e antissemitismo, uma estratégia repetidamente denunciada dessas organizações que apontam a instrumentalização do antissemitismo para justificar a repressão do movimento contra o genocídio. Junto com a estratégia de autovitimização, a criminalização dos que protestam é uma parte fundamental do relato. O líder da Liga Anti-Difamação chegou a qualificar as organizações Students for Justice in Palestine e Jewish Voice for Peace como representantes do Irã. Ao mesmo tempo, eles são acusados de estar a serviço de Soros e Rockefeller…

Harvey debate socialismo e liberdade.

 

Harvey debate Socialismo e Liberdade

Quando a direita captura um conceito essencial, um projeto emancipador precisa ressignificá-lo. Não a partir do individualismo, mas da justiça social e do resgate do tempo que o capital sequestra. Pois só uma vida digna pode ser livre

Foto: Eric Gomes / Mídia NINJA
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Este é um capítulo de Crônicas anticapitalistas, livro de David Harvey publicado pela Editora Boitempo, parceira editorial de Outras Palavras. Quem apoia nosso jornalismo tem desconto de 20% em todos o catálogo da editora. Saiba como colaborador com o Outras Palavras

A direita sequestrou o conceito de liberdade; apropriou-se dele, como se este fosse seu, e passou a utilizá-lo como arma na luta de classes contra os socialistas, que supostamente representariam a “ausência de liberdade”. Esse fenômeno é bastante visível nos Estados Unidos, mas está longe de ser exclusivo do país. Estive há pouco tempo no Peru participando de uma série de conferências e foi levantado o tema da liberdade. Os estudantes estavam muito interessados na questão: “O socialismo exige abrir mão da liberdade individual?”. Eles traziam o discurso de que era preciso evitar a todo custo a submissão, imposta pelo socialismo/comunismo, do indivíduo ao controle estatal. Respondi que a liberdade individual não só faz parte como deve ter centralidade em qualquer projeto socialista emancipatório. Insisti que concretizar as liberdades individuais é um objetivo central dos projetos emancipatórios socialistas. Mas argumentei que para alcançar isso é preciso construir coletivamente uma sociedade na qual cada um de nós tenha oportunidades e possibilidades de vida adequadas para realizar plenamente as nossas potencialidades

Marx tinha algumas coisas interessantes a dizer sobre essa questão. Uma delas é que “o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas” [1]. Liberdade não significa nada se você não tem o que comer. Liberdade é uma palavra oca se lhe é negado o acesso a saúde, moradia, transporte e educação decentes. A função do socialismo é fornecer essas necessidades básicas, satisfazer essas necessidades humanas básicas para que as pessoas fiquem livres para fazerem exatamente o que quiserem. O ponto de chegada de uma transição socialista, e o ponto de chegada da construção de uma sociedade comunista, é um mundo em que as capacidades e poderes individuais estão inteiramente libertos de vontades, necessidades e outras amarras políticas e sociais. Em vez de entregar à direita o monopólio da noção de liberdade individual, precisamos reivindicar a ideia de liberdade para o socialismo.

Mas Marx também observa que a liberdade é uma faca de dois gumes. Ele tem uma forma curiosa de olhar para isso do ponto de vista dos trabalhadores. Os trabalhadores em uma sociedade capitalista, diz Marx, são livres num duplo sentido. Eles têm a liberdade de oferecer sua força de trabalho para quem bem entenderem no mercado de trabalho. Podem oferecê-la em quaisquer condições contratuais que conseguirem negociar livremente. Ao mesmo tempo, eles estão “livres” de todo e qualquer controle ou acesso aos meios de produção. Precisam, portanto, entregar sua força de trabalho ao capitalista para conseguir seu sustento [2] .

Eis a sua liberdade de dois gumes. Para Marx, essa é a contradição central da liberdade sob o capitalismo. No capítulo d’O capital sobre a jornada de trabalho [3], ele oferece a seguinte formulação: o capitalista é livre para dizer ao trabalhador: “quero empregá-lo com o menor salário possível pelo maior número de horas possível fazendo exatamente o trabalho que eu especificar. É isso que exijo para contratá-lo”. E o capitalista tem liberdade de fazer isso numa sociedade de mercado porque, como sabemos, a sociedade de mercado tem a ver com oferta, demanda e negociação. Por outro lado, o trabalhador também tem a liberdade de dizer: “Você não tem direito de me fazer trabalhar catorze horas por dia. Você não tem o direito de fazer o que quiser com a minha força de trabalho, particularmente se isso encurtar a minha vida e colocar em risco a minha saúde e bem-estar. Só estou disposto a fazer uma jornada de trabalho justa por um salário justo”.

Dada a natureza da sociedade de mercado, tanto o capitalista quanto o trabalhador estão corretos em termos do que cada um está exigindo. “Ambos”, diz Marx, estão “igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força”[4]. Ou seja, é a luta de classes entre capital e trabalho que define a questão. O resultado repousa na relação de poder entre capital e trabalho, que pode sempre se tornar coercitiva e violenta. É a luta entre capital e trabalho que efetivamente determina a extensão da jornada de trabalho, o salário e as condições de trabalho. O capitalista é livre para maximizar a taxa de exploração dos trabalhadores sob a lei da troca de mercadorias; e o trabalhador é livre para resistir. A colisão entre as duas liberdades está embutida no dia a dia do capitalismo.

Essa ideia de liberdade como uma faca de dois gumes é muito importante de ser analisada em detalhes. Uma das melhores elaborações sobre o tema é de um historiador econômico chamado Karl Polanyi. Veja, Polanyi não era marxista. Não subscrevia à visão marxista das coisas, mas com certeza leu Marx e evidentemente refletiu bastante sobre essa questão de direitos e a questão da liberdade sob o capitalismo. Em A grande transformação, Polanyi diz que existem boas formas de liberdade e más formas de liberdade. Entre as más formas de liberdade que elenca estavam as liberdades de explorar sem limites os seus semelhantes; a liberdade de obter ganhos excessivos sem prestar um serviço proporcional à comunidade; a liberdade de impedir que invenções tecnológicas sejam usadas para benefício público; a liberdade de lucrar com calamidades públicas ou calamidades naturalmente induzidas, algumas das quais são secretamente projetadas para tanto (uma ideia que Naomi Klein discute em A doutrina do choque [5]). No entanto, continua Polanyi, a economia de mercado sob a qual essas liberdades se alastraram também produziu liberdades que prezamos muito: liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o próprio emprego. Por mais que valorizemos essas liberdades por si mesmas – e penso que muitos de nós ainda o fazemos, mesmo os marxistas (eu incluso) –, elas são, em grande medida, subprodutos da mesma economia que também é responsável pelas liberdades malignas.

A resposta de Polanyi a essa dualidade pode soar muito estranha dada a atual hegemonia do pensamento neoliberal e a forma pela qual a liberdade nos é apresentada pelo poder político existente. Ele escreve: “O fim da economia de mercado” – isto é, a superação da economia de mercado – “pode se tornar o início de uma era de liberdade sem precedentes” [6]. Ora, essa é uma afirmação um tanto chocante – dizer que a liberdade real começa a partir do momento que deixarmos a economia de mercado para trás. Ele continua:

A liberdade jurídica e real pode se tornar mais ampla e mais geral do que em qualquer tempo; a regulação e o controle podem atingir a liberdade, mas para todos e não apenas para alguns. Liberdade não como complemento do privilégio, contaminada em sua fonte, mas como um direito consagrado, que se estende muito além dos estreitos limites da esfera política e atinge a organização íntima da própria sociedade. Assim, as antigas liberdades e direitos civis serão acrescentados ao fundo da nova liberdade gerada pelo lazer e pela segurança que a sociedade oferece a todos. Uma tal sociedade pode-se permitir ser ao mesmo tempo justa e livre. [7]

Agora, essa ideia de uma sociedade baseada em justiça e liberdade me parece ter sido pauta política do movimento estudantil dos anos 1960, e da assim chamada Geração 68. Havia uma demanda generalizada por justiça e liberdade: liberdade da coerção estatal, liberdade da coerção imposta pelo capital corporativo, liberdade das coerções do mercado, mas também temperadas pela demanda por justiça social. Foi nesse contexto que escrevi o meu primeiro livro radical, Justiça social e a cidade [8]. A resposta política que o capitalismo deu a isso na década de 1970 foi interessante. Tratou-se, como vimos no capítulo 2, de “ceder” e incorporar certas pautas de liberdade individual como forma de escamotear as demandas de justiça social. Ceder no quesito liberdades foi um movimento circunscrito. Significou, basicamente, a liberdade de escolha no mercado. Ou seja, o livre-mercado e a liberdade em relação à regulação estatal foram as respostas dadas à questão da liberdade. Quanto à justiça social, o próprio mercado cuidaria disso com seus mecanismos de concorrência, supostamente tão organizados que garantiriam a cada um o que lhe seria justo e devido. O efeito, no entanto, foi fomentar muitas das liberdades malignas (por exemplo, a exploração dos outros) em nome das liberdades virtuosas.

Polanyi identificou com clareza essa guinada. A passagem ao futuro vislumbrado está bloqueada por um obstáculo moral que ele denomina “utopismo liberal”. Penso que ainda enfrentamos os problemas postos por essa utopia do livre-mercado. É uma ideologia muito presente na mídia e nos discursos políticos. O utopismo liberal do Partido Democrata, por exemplo, é uma das coisas que impede a realização de uma verdadeira liberdade. “O planejamento e o controle”, escreveu Polanyi, “vêm sendo atacados como negação da liberdade. A empresa livre e a propriedade privada são consideradas elementos essenciais à liberdade.” [9] Essa era a visão que os principais ideólogos do neoliberalismo promoviam. É isso que Milton Friedman e Friedrich Hayek vivam martelando: que a liberdade do indivíduo perante a dominação estatal só pode ser assegurada numa sociedade baseada nos direitos à propriedade privada e à liberdade individual em mercados livres e abertos.

O planejamento e o controle são, portanto, atacados como sendo negações da liberdade; e postula-se a propriedade privada como essencial à liberdade. Nas palavras de Polanyi: “Não é digna de ser chamada ‘livre’ qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos. A liberdade que a regulação cria é denunciada como não liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são descritos como camuflagem da escravidão”. [10] Para mim, essa é uma das questões-chave do nosso tempo. Seremos capazes de ir além das liberdades limitadas do mercado, das suas determinações e da regulação das nossas vidas pelas leis da oferta e da demanda (aquilo que Marx denominou as leis do movimento do capital), ou simplesmente aceitaremos, como disse Margaret Thatcher, que não há alternativa? Tornamo-nos livres do controle estatal, mas escravos do mercado. A isso não há alternativa. Para além disso, não há liberdade. É o que prega a direita, e é o que muitas pessoas passaram a acreditar.

Eis o paradoxo da nossa atual situação: que em nome da liberdade acabamos no fundo adotando uma ideologia liberal utópica que efetivamente funciona como uma barreira à realização de uma liberdade real. Penso que não faz sentido falar em um mundo livre quando alguém que quer uma educação precisa desembolsar uma enorme quantia de dinheiro para obtê-la, a ponto de contrair dívidas estudantis que acabam por colonizar boa parte do seu futuro. Isso é servidão por dívida, é peonagem. E é algo que precisa ser evitado e circunscrito. A educação precisa ser gratuita; ninguém deveria pagar para se educar. O mesmo vale para saúde e moradia, bem como os elementos básicos para garantir uma nutrição saudável.

Observando de uma perspectiva histórica, passamos de um mundo, nos anos 1960, em que se oferecia moradia social, para um mundo em que isso não existe mais. Na Inglaterra, por exemplo, uma grande parcela da provisão habitacional na década de 1960 se encontrava no setor público; era moradia social. Na minha infância, essas moradias populares constituíam um fornecimento básico de uma necessidade, a um custo relativamente baixo. Depois veio Margaret Thatcher e privatizou tudo, com um discurso de que as pessoas seriam muito mais livres se pudessem ser donos dos seus imóveis de modo a participar de uma “democracia de proprietários”. E assim, em vez de 60% da moradia se concentrar no setor público, de repente passamos a uma situação em que apenas cerca de 20% (ou até menos que isso) da habitação é pública. A moradia vira uma mercadoria que, por sua vez, torna-se parte de uma atividade especulativa. À medida que se converte em veículo de especulação, o preço do imóvel sobe e o resultado é uma elevação no custo da moradia sem que haja um aumento efetivo na provisão habitacional direta.

Fui criado naquilo que se poderia denominar uma comunidade respeitável de classe trabalhadora em que as pessoas tinham casa própria. A maior parte das pessoas da classe trabalhadora não tinha casa própria, mas havia um segmento que tinha, e a comunidade em que cresci pertencia a esse segmento. A casa era vista como valor de uso; isto é, era um lugar em que morávamos e fazíamos coisas – nunca falávamos sobre seu valor de troca. Recentemente vi alguns dados que mostravam que, até a década de 1960, o valor das moradias de classe trabalhadora não apresentou nenhuma mudança ao longo de cem anos ou mais.

A partir dessa década, no entanto, a moradia começou a ser vista como valor de troca, em vez de valor de uso. As pessoas começaram a indagar sobre o valor monetário desses imóveis e a indagar se (e como) seria possível alavancar ele. Ou seja, de repente, começaram a aparecer considerações sobre valor de troca – o que foi totalmente ao encontro da política thatcheriana de privatizar a moradia social por completo com a promessa de que assim todos poderiam participar do mercado imobiliário e passar a se beneficiar da escalada dos valores de troca.

Uma das consequências disso é que quem estava nos estratos mais baixos da população, do ponto de vista de renda, passou a enfrentar uma dificuldade crescente de encontrar um lugar para morar. Em vez de viver em localizações muito centrais, onde havia fácil acesso a oportunidades de emprego, eles foram sendo expulsos dos centros das cidades e das melhores regiões e passaram a ter que se deslocar cada vez mais entre casa e trabalho. Mas quando chegamos à década de 1990, a casa já se converteu novamente em instrumento de ganhos especulativos. Sob pressões especulativas, os valores dos imóveis cresceram de maneiras muitas vezes vertiginosas (embora também erráticas). O resultado geral é que muitas das pessoas nos estratos mais baixos de renda não conseguem encontrar onde morar. O resultado é uma crise habitacional, e a produção de uma escassez de moradia a preços acessíveis.

Cresci na Inglaterra. Lembro que, na minha juventude, havia pessoas em situação de rua, mas muito poucas. Hoje, entretanto, em grandes cidades como Londres, você encontra cada vez mais moradores de rua. Em Nova York, temos cerca de 60 mil pessoas em situação de rua. Uma enorme quantidade de crianças não tem lar – não no sentido de que você as vê nas ruas, mas de que elas ficam pingando de casa em casa, dormindo no sofá de parentes ou amigos; o chamado “couch surfing”. Não se criam comunidades solidárias assim.

Hoje vemos muita atividade de construção civil acontecendo em cidades ao redor do mundo. Porém, é tudo especulativo. A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam. Quando criamos cidades visando investimento em vez de moradia, o resultado é o tipo de situação que vemos em Nova York, onde há uma enorme crise de falta de moradia a preços acessíveis em meio a uma explosão de construção de imóveis para o mercado de alta renda. Você precisa de ao menos 1 milhão de dólares para entrar nesse mercado. A esmagadora maioria da população está mal servida em termos de valores de uso de moradia; tem pouquíssimo acesso a valores de uso adequados. Ao mesmo tempo, estamos construindo enormes apartamentos de luxo para os ultrarricos. Michael Bloomberg, o ex-prefeito de Nova York, tinha a ambição de que todo bilionário do mundo viesse investir na cidade e tivesse seu apartamento de luxo em um lugar como Park Avenue. Foi de fato o que aconteceu: há xeiques árabes e bilionários indianos, russos ou chineses que não moram em Nova York; eles só vêm para cá uma ou duas vezes ao ano e pronto. Isso não é base para sustentar condições dignas de vida e moradia para a massa da população.

Estamos construindo cidades, construindo imóveis, de uma forma que proporciona uma enorme liberdade para as classes altas, ao mesmo tempo que produz uma falta de liberdade para o resto da população. Penso que era algo dessa ordem que Marx tinha em mente quando fez o referido comentário segundo o qual o reino da necessidade tem de ser superado para que o reino da liberdade seja alcançado. O que temos hoje em Nova York é liberdade de investimento, liberdade para as classes mais altas escolherem onde querem morar, enquanto a esmagadora maioria da população fica quase sem escolha alguma. É assim que as liberdades de mercado limitam as possibilidades e, desse ponto de vista, penso que a perspectiva socialista seria seguir a sugestão de Polanyi, isto é: coletivizar a questão do acesso à liberdade, do acesso à moradia. Fazer com que ela deixe de ser algo balizado pelo mercado ao recolocá-la na esfera pública. Nossa bandeira seria: moradia como um bem público.

Esta é uma das ideias básicas do socialismo no sistema contemporâneo: colocar as coisas no domínio público. Encoraja-me um pouco o fato de que, na Inglaterra, o Partido Trabalhista britânico – um dos poucos partidos tradicionais que ainda parece se pautar por alguma urgência democrática vigorosa [Este comentário foi feito em janeiro de 2019, quando Jeremy Corbyn ainda era líder do Partido Trabalhista britânico, e posteriormente revisto no início de 2020, ainda nos primeiros meses do mandato de seu sucessor, Keir Starmer. (N. E.)] – propôs que muitas áreas da vida pública fossem reavidas do mercado, recuperadas para o domínio público – por exemplo, os transportes. Se você chegar para qualquer um na Inglaterra e disser que a gestão privada dos trens e ferrovias está produzindo um sistema de transportes mais eficiente, certamente vão rir da sua cara. As pessoas conhecem muito bem as consequências da privatização. Ela tem sido um desastre, uma zona, uma descoordenação. O mesmo vale para o transporte público nas cidades. Também temos a privatização do abastecimento hídrico, que supostamente seria algo maravilhoso, mas no fundo o que vemos, claro, é que a água passa a ser cobrada. É uma necessidade básica; não deveria ser prestada pelo mercado. Você precisa pagar pelo seu consumo de água e o serviço sequer é bom.

Portanto o Partido Trabalhista insistiu que há uma série de áreas que representam necessidades básicas para a população e não devem ser providenciadas pelo mercado. Prometeu acabar com o endividamento estudantil, acabar com essa coisa de acesso à educação via privatização, e se comprometeu a trabalhar no sentido de atender necessidades básicas por meio do domínio público. Há um anseio, penso eu, por retirar necessidades básicas do domínio do mercado, bolar formas alternativas de providenciá-las. Dá para fazer isso com educação, saúde, moradia e inclusive insumos alimentares básicos. De fato, há experiências de alguns países latino-americanos que buscaram subsidiar uma alimentação básica a populações de baixa renda. Não vejo motivo algum para não termos uma configuração básica de fornecimento alimentar para a maior parte das pessoas do mundo hoje.

Isso é o que significa dizer que o reino da liberdade só é possível quando realmente atendemos a todas as necessidades básicas que precisaremos para que todos possam levar uma vida decente e adequada. É em função dessa ideia de liberdade que uma sociedade socialista se pautaria. Mas precisamos de uma forma e um esforço coletivos para fazer isso. Infelizmente, o Partido Trabalhista britânico perdeu as eleições de lavada [As eleições gerais britânicas de dezembro de 2019 deram uma vitória acachapante para o Partido Conservador, liderado por Boris Johnson. Foi o quarto revés consecutivo do Partido Trabalhista nas eleições gerais – e sua pior derrota desde 1935. (N. E.)]. Mas estou convicto de que a derrota não se deve ao seu programa progressista (que angariou muito apoio público), e sim ao fracasso do partido em assumir uma postura decisiva em relação ao Brexit e à sua incapacidade de lidar com os ataques coordenados dos meios de comunicação de massa.

Por fim, um último ponto. Costuma-se dizer que para alcançar o socialismo temos de renunciar à nossa individualidade e abrir mão de algo. Bem, até certo ponto talvez algo disso seja verdade; no entanto há, como insistiu Polanyi, uma liberdade mais ampla a ser alcançada quando ultrapassarmos as realidades cruéis das liberdades individualizadas do mercado. Na minha leitura, Marx está nos dizendo que a tarefa é maximizar o reino da liberdade individual, mas que isso só pode acontecer quando resolvermos o reino da necessidade. A tarefa de uma sociedade socialista não é regular tudo o que acontece em uma sociedade; de modo algum. A tarefa de uma sociedade socialista é garantir que todas as necessidades básicas sejam atendidas – fornecidas livremente – para que então as pessoas possam fazer exatamente o que quiserem, quando quiserem.

Não é só que os indivíduos precisam poder acessar os recursos para tanto; eles também precisam ter tempo para isso. A liberdade – o tempo livre, o verdadeiro tempo livre – é algo absolutamente crucial para a ideia de uma sociedade socialista. Tempo genuinamente livre para que todos possam fazer o que quiserem: eis a medida daquilo a que o socialismo aspira. Se você perguntar a qualquer um agora: “Quanto tempo livre você tem?”, a resposta típica é: “Praticamente nenhum. Meu tempo está todo tomado por isso, aquilo e tudo o mais”. Se a verdadeira liberdade é um mundo em que temos tempo livre para fazer o que quisermos, então o projeto emancipatório socialista propõe que esse seja um eixo central da sua missão política. Isso é algo para o qual todos nós podemos e devemos nos empenhar.


Notas:

[1] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: O processo global da produção capitalista (trad. Rubens Enderle, Boitempo, 2017), p. 882.

[2] “Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” Idem, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 244.

[3] Ibidem, p. 305-73.

[4] Ibidem, p. 309.

[5] Naomi Klein, A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (trad. Vânia Cury, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008).

[6] Karl Polanyi, A grande transformação: origens da nossa época (trad. Fanny Wrobel, Rio de Janeiro, Campus, 2000), p. 297.

[7] Ibidem.

[8] David Harvey, Justiça social e a cidade (trad. Armando Corrêa da Silva, São Paulo, Hucitec, 1980).

[9] Karl Polanyi, A grande transformação, cit., p. 297.

[10] Ibidem.